Eliane de Andrade
Psicanalista. Membro Efetivo, Didata e Docente da SPRJ. Membro da Trieb Mineira.
Para que um ser humano necessita de outro ser humano?
Essa pergunta que, para alguns de nós, pode parecer absurda, para outros de nós é uma dúvida excruciante que nos acompanha durante toda a vida. Até onde conseguimos ir nenhum ser humano assim se torna, sem ter tido um outro da mesma espécie a auxiliá-lo desde as primeiras horas de existência.
“Existirmos, a que será que se destina
Pois quando tu me deste a rosa pequenina,
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino infeliz não se nos ilumina
Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria vida era tão fina
E éramos olharmo-nos intacta retina
A cajuína, cristalina em Teresina.”
Caetano Veloso – Cajuína – 1979
Sim, a mãe pode ser um homem, o que importa é que pode ser mãe que cuida, que vela, que tem dentro de si o desejo de que o menininho ou a menininha se tornem lindos e donos de seus corpos. Corpos eróticos.
A psicanálise sabe que tudo começa antes da concepção. Mas tudo termina em sociedade. E no meio do caminho, o que acontece?
Bom, no ínterim, vem a sociedade…
Ela é composta de outras pessoas, de gente diferente de nós, de nossos pais, de gente esquisita. Aprendemos ou não, em casa, que essas pessoas são nossos semelhantes.
A palavra “semelhante” é bem boa: parece comigo, mas não sou eu!
Já aponta para uma diferença e uma igualdade. E o que fazer com tais pessoas?
A tendência natural do narcisista é utilizar-se de todo e qualquer recurso que a vida lhe ofereça. Para ele, o mundo foi feito para ser desfrutado e não há campanha ecológica que consiga gerar a ideia de coletivo, finitude, desgaste. Assim, quando falamos de coletivo, estamos falando de algo que só pode se construir na mente de um não-narcisista. A palavra coletivo implica uma noção de “nós”, do outro que não sou eu, mas que, sendo meu semelhante, faz-me ser como ele, guardadas as diferenças individuais, mas relevadas as semelhanças. Também gosto muito da palavra “corporativismo” que indica um “espírito de corpo”, espírito de grupo, identificação grupal.
Então volta a questão: por que alguns de nós conseguimos ter um grupo de trabalho, fazermos parte de um grupo de ações, termos amigos e causas sociais e muitos de nós jamais encontram dentro de si a possibilidade de tal coisa?
Vejam que não me refiro à farra, à festa, à balada, ao boteco, não me refiro ao entorpecimento maravilhoso que se dá no estádio de futebol.
Tudo isso é muito prazeroso! Tudo tem descarga de tensão envolvida, mas nada disso gera o espírito de corpo!
A camisa do meu time de futebol, vista em um desconhecido na rua, não me faz sentir empatia por ele. Apenas me faz ficar contente de vê-la sem maiores preocupações com quem a porta.
Então, na vida psíquica das pessoas, existe um componente muito importante e pouco falado que é a identificação coletiva. Nós, sindicalistas, conhecemos isso com o nome de política. Essa, a definição de um estado de identificação do nosso mundo ao redor que permite averiguar qual a vantagem e a desvantagem de pertencer a um determinado grupo. Quais as condições de vida dadas a esse grupo, quanto de ética e justiça em que tal grupo vive?
Quando temos um sintoma psíquico, Freud nos ensinou que ele aconteceu porque a energia que temos em nossa mente foi desviada do seu uso apropriado e canalizada para uma resposta não adequada, gerando sofrimento inútil. A esse desvio e mau uso da energia psíquica, Freud nomeou de adoecimento da “economia psíquica”, num claro uso do entendimento da física e das ciências da economia. Afinal, economia é a arte de utilizar os recursos de maneira específica para que não falte. E assim, uma sociedade que os utiliza de forma a que alguns tenham os recursos com abundância e outros tenham abundância de escassez de recursos, é uma sociedade que tem uma economia perversa.
E perversão é o uso da energia para fins pouco sociais, pouco humanos, nada solidários. Perverso é o que escapa à lei, à ordem simbólica, o que só pensa em si e despreza o outro.
Então, o mecanismo da identificação, aquele que permite que se espelhem os ideais de outra pessoa em mim, são tamponados: só o espelho atrai o perverso, somente seus interesses interessam. A outra pessoa, o resto da humanidade, o planeta… não existem verdadeiramente.
Temos aí o que poderíamos considerar o Eu Soberano! Eu, só Eu, tudo para o Eu, existe algo além do Eu?
E quem são as pessoas que conseguem se identificar com o Nós?
Geralmente são aquelas que têm desde o início da vida um olhar para o diferente, para o que está ao lado, a curiosidade sobre o Outro, a vontade de estar em grupo para criar algo junto! Em algum lugar, isso é conhecido como o nome de grupo, coletivo, equipe, pátria, turma.
Mas o que deu errado , por exemplo, com aqueles que no estádio de futebol matam, no país dão golpe, traem o par, preferem o conforto à luta e nunca pensam que fazem parte de um todo?
É possível desenvolver a capacidade de se sentir dentro de uma classe de pessoas? É possível desenvolver a preocupação social e o desejo de igualdade entre os povos e pessoas?
Só e somente se houver uma matriz não narcisista na pessoa. Do contrário, sempre haverá a impossibilidade de identificação grupal, o hedonismo, o puro egoísmo.
Educamos e fazemos política para divulgar a ideia do grupo, da pátria para todos, da economia distribuindo os recursos para todos. Não temos conseguido como desejávamos em virtude da dificuldade de tratar psicologicamente as pessoas, de gerar pessoas mais amorosas e empáticas e de encontrar uma conduta para aqueles que nascem totalmente impossibilitados de serem amorosos.
A luta contra o Eu Soberano é não só psicanalítica, sociológica, política progressista, mas também educacional: desejar ter filhos tem a ver com poder tê-los. Ser capaz de levá-los às verdadeiras condições de socialização.
O ser humano não é mais um ser animal. Ele é sobretudo simbólico e , por isso, precisa pensar o que gera, o que eleva, o objetivo de absolutamente tudo o que faz!
Poder abrir mão de ser, em tudo, igual ao meu vizinho, por eu perceber minhas limitações de toda ordem, sejam elas econômicas, biológicas, psicopatológicas, sociais, é a maneira como cada um de nós pode contribuir para que haja compromisso com a vida em sociedade neste planeta. Mas cada uma das decisões acima citadas leva a um posicionamento mais restrito de vida, a uma escolha diferente da escolha da grande massa social.
Ser diferente pode ser exatamente ser saudável. Ser igual a todos pode ser exatamente ser adoecido.
E somos todos iguais!