Eliane de Andrade
Psicanalista. Membro Efetivo, Didata e Docente da SPRJ. Membro da Trieb Mineira.
Quando me convidaram para falar nessa Mesa e me pediram um título, suei frio! Como posso falar das mulheres? Como poderia representar e ter ciência do que vivem/sofrem todas as mulheres?
Informei à minha interlocutora que eu poderia falar de algumas mulheres: a mulher que vejo todos os dias no espelho; as que escuto no divã; aquelas com as quais trabalho; para as quais dou aulas ou discuto em grupos de estudo sobre a situação das mulheres no mundo hoje. Mas isto fala “da mulher”? Claro que não. Por menos que eu queira, minha mensagem se insere numa visão ocidental e patriarcal-cristã. As mulheres negras, quilombolas, indígenas, LGBTQIA+, imigrantes, refugiadas, de outras cultuas podem não se sentir aqui representadas. Então é um texto que parte de um horizonte reduzido, no qual me situo, com todas as limitações que nossa própria inclusão traz a qualquer pesquisador/a ou cientista.
Assim, vou registrar um pouco do que sinto e ouço, sem pretender representar esta categoria ampla chamada Mulher.
Segundo a pesquisadora e doutora Marlise Matos (1; 2), professora do Departamento de Ciências Políticas da UFMG, a luta das mulheres por condições de igualdade e reconhecimento é um processo político e histórico. Para ela, o Feminismo encontra-se, atualmente, na sua quarta onda. De acordo com a pesquisadora, a opressão às mulheres continua gerando a luta, pois obtivemos avanços, mas ainda bastante insuficientes.
Sigo conclamando a “musa feminista” Simone de Beauvoir (que, segundo a professora Marlise, representa a segunda onda do Feminismo) em seu sempre eterno e atual O Segundo Sexo afirma, categoricamente que “…o mundo sempre pertenceu aos machos” (3).
Historicamente, é fácil provar tal afirmação: desde o sumiço da Deusa e a criação do mundo feito à imagem e semelhança de um Deus homem, Eva, em detrimento de Lilith, surgida da costela de Adão, passamos pela Idade Média, com sua fogueiras para queimar mulheres brilhantes, também conhecidas como Bruxas, chegando ao trabalho doméstico escravizante e alienador, as operárias têxteis queimadas por pedirem redução de horas trabalhadas e equiparação salarial em NY, também nos EUA a queima dos sutiãs em protesto aos concursos de Misses, assassinatos de líderes e representantes femininas como Margarida Silva, Marielle, e tantas outras, segue a luta cotidiana das mulheres por uma vida com dignidade, reconhecimento e respeito. O corpo feminino, seu lugar sempre difuso para os homens, feito de objeto sexual, continua sendo aniquilado/escravizado por trabalhos exaustivos ou vigiados/cerceados por uma moral duvidosa.
Em 1977, quando publicado no Brasil, o livro Vigiar e Punir (4), de Michel Foucault, trazia o proto pós-modernismo (5) do estudo das consequências controladoras e alienantes da vigilância corporal. Corpo e discurso são o centro do seu trabalho, revelando a institucionalização dos saberes e sua subserviência à microfísica do poder. Propõe o “corpo político”, ou seja, “…conjunto dos elementos materiais e das técnicas que servem de armas, de reforço, de vias de comunicação e de pontos de apoio para as relações de poder e de saber que investem os corpos humanos e os submetem…” (4, p. 31).
Mas enquanto alguns poderosos, reis, ganham uma alma à medida que se afastam de seus corpos, outros – frágeis, presidiários – são reduzidos a nada! As tecnologias de poder sobre o corpo operam desumanizando os não poderosos.
O corpo da mulher continua sendo algo que, para a maioria da população masculina, parece ser despossuído de alma: temos um dos maiores índices de feminicídio no Brasil.
No Monitor da Violência do G1(mídia convencional, portanto, o dado é assustador), de 08/03/2023, lemos que, em 2022, 1.410 mulheres foram assassinadas no Brasil, apenas por serem mulheres, o que representa uma mulher morta a cada 6 horas (6).
Já o Jornal Estado de Minas publica em 20/07/2023 que Minas é o terceiro Estado em número de ligações para o 190 pedindo socorro em 2022, o que equivale a mais de 31 mil ligações no ano! (7)
O Jornal Brasil de Fato, em sua edição de 24/08/2023, informa que, no primeiro semestre de 2023, no Rio de Janeiro, foram registrados 16 mil casos de violência doméstica contra mulheres (8). Os atendimentos a mulheres nestas condições parecem ter crescido em todo o país, sendo expressiva a busca de medidas protetivas da Lei Maria da Penha.
Diante desta pequena consulta em sites de notícias (poderíamos estendê-la enormemente nas mídias convencionais e/ou alternativas!), pasmos que ficamos, somos obrigados a rever todas as grandes conquistas que as mulheres fizeram ao longo dos séculos: parece que continuamos a ser as bruxas que podem ser queimadas na fogueira!
Se a cada minuto, 35 mulheres são, de alguma maneira, agredidas no Brasil, estamos diante de uma infestação machista-misógina que não se cura.
Voltando à Edição do Jornal Estado de Minas (7):
Para a professora do Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG) e pesquisadora do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (CRISP) da UFMG, Luana Hordones, o aumento da violência doméstica contra as mulheres pode estar ligado à expansão do discurso de ódio direcionado às diversas minorias, principalmente, no último ano. A professora Luana afirma que:
As mulheres são muito vulneráveis a esse discurso de ódio violento que teve uma expansão nos últimos anos no Brasil, especialmente no ano passado, por causa das eleições. Um ano eleitoral que teve esse discurso como instrumento político. A expansão desse discurso afetou tanto essas mulheres como outras minorias. Além da misoginia, que já é um traço da nossa cultura, os números refletem este discurso como instrumento político-social no Brasil.
Já estávamos vivendo a perda do constrangimento com relação a ataques a mulheres. O ex-titular máximo da República, antes e depois de eleito (2019-2022), não se avexava em nos atacar, diminuir e humilhar. Segundo Judith Butler (9), “a injúria linguística parece resultar não apenas das palavras utilizadas para se dirigir a alguém, mas também do próprio modo de endereçamento, um modo – uma disposição ou um posicionamento convencional – que interpela e constitui o sujeito” (p. 12-13).
Ora, a excepcionalidade do que o Brasil viveu em termos de ordem, convívio, gerência, crescimento, etc., entre 2016 e 2022, apenas mostrou, com todas as matizes e espectros possíveis, que no coração de grande parte da população a palavra (e a pessoa) “mulher” pode ser suprimida ou adjetivada negativamente sem o menor escrúpulo. Não é à toa que uma primeira-dama pode ser convidada a ser referida como “bela, recatada e do lar”, voltando a uma coisificação medieval. A porteira do retrocesso foi aberta não só na retirada de uma mulher da Presidência da República, mas na apresentação injuriante e reducionista do sexo feminino.
Ainda seguindo Butler, pensamos que a linguagem nos precede e nos guia. A maneira como somos nomeados tem papel importante nas nossas formações de autoimagem e constituem nossa identidade. Da linguagem não verbal dos pais que esperam a chegada do bebê, ao balbucio maternal ao recém-nascido, a palavra, mesmo que não dita, se inscreve em nossa mente e nos apresenta o desejo dos pais. A injúria, ou o preconceito, funcionarão como marca a ser cumprida (ou não) na vida da mulher.
Freud (1912-2013), em Psicologia do Amor II (10), nos conta sobre os perigos que se sofre, desde a infância até a vida adulta, no sentido de poder amar e desejar o mesmo objeto. Informa, logo no início do texto, que o que mais leva as pessoas a procurarem auxílio (possivelmente do psicanalista…) é a impotência psíquica. Nesta afecção, o desejo sexual não encontra resposta no funcionamento dos órgãos sexuais.
Cita, ainda, uma possível fixação incestuosa na mãe ou na irmã (claro, ele falava apenas do homem), impressões penosas acidentais relacionadas à atividade sexual infantil, “…e também aqueles fatores que, de maneira geral, reduzem a libido que se deve dirigir ao objeto sexual feminino.” Ele nos informa que, como toda neurose, a origem é determinada por uma inibição na história do desenvolvimento da libido, impedindo que a corrente afetiva e a sensual se combinem. As frustrações da realidade e a atração aos objetos da infância podem se combinar para fixar a libido. Porém, a proibição do incesto se impondo, esta fixação permanece no inconsciente, gerando insistente lembranças. Ora, todas as defesas contra as fantasias de consumação do mais proibido dos coitos tendem ao fracasso, gerando sintomas, sendo o mais importante para o nosso estudo a depreciação do objeto sexual. Quer dizer, tanto faz que seja vivida na impossibilidade concreta do encontro sexual, pelo fato de o objeto não ter valor, quanto só poder realizar o objeto sexual com um objeto considerado sem valor (pelo homem).
Se pensamos a patologia da desfusão cognitiva das correntes sensual e afetiva, como apresentada por Freud, talvez não lêssemos as nuances que ela implica: há graus desta desvalorização do objeto. Do ato sexual, que é imediatamente abandonado como “sujo”, ao feminicídio, há toda uma gama de relações em que seu aparecimento se mescla. Neste espectro, encontramos o que Foucault chamaria de “tecnologia de poder sobre o corpo”, quando a mulher é que terá seu corpo vigiado, punido, treinado, corrigido. E, ainda assim, quando as fixações infantis e sádicas do homem não conseguem ser elaboradas, é o corpo da mulher que paga, nas violências domésticas (e outras) e nos feminicídios. A tentativa machista é a de querer colocar a mulher num limiar de controle absoluto, tanto no corpo quanto no lugar social, de forma a protegê-lo de suas próprias fantasias infantis. Coação, vigilância, castigo, punição são tratados como “amor”, “cuidado”, “perdi a cabeça”, “ela sabe porque apanha”, “fiquei com ciúmes”, “não aceito o fim da relação” (estas duas últimas, as mais frequentes “justificativas” para a grande parte dos feminicídios).
Uma certa “cultura”, aparelho ideológico, por meio de suas produções musicais, televisivas, etc., revela que a mulher é quem se submete a ser um objeto sexual desejadíssimo, a que tem de ouvir os soluços de um macho “arrependido”. Também é ela quem normatiza e iguala os corpos, pois consegue fazer crer que transmite o que é ser mulher (uma boa biblioteca resolveria esse caso, mas o hábito da leitura foi substituído pela ansiosa “checagem” do celular).
Freud, continuando, afirma que a impotência psíquica não se restringe ao coito não-realizado, mas a uma situação muito mais comum do que se imagina, que é a não obtenção de prazer pelo homem no ato sexual: “…homens que nunca falham no ato, mas que o realizam sem dele derivar qualquer prazer especial…” (10, p. 168) – nestes momentos eu quase absolvo o machismo de Freud! Continua ele:
Se… voltarmos nossa atenção, não para a extensão do conceito de impotência psíquica, mas para as gradações em sua sintomatologia, não poderemos fugir à conclusão de que o comportamento amoroso dos homens, no mundo civilizado de hoje, de modo geral, traz o selo da impotência psíquica. Existe apenas um pequeno número de pessoas educadas nas quais as duas correntes, de afeição e de sensualidade, se fundiram adequadamente; o homem quase sempre sente respeito pela mulher, que atua como restrição à sua atividade sexual, e só desenvolve potência completa quando se acha com um objeto sexual depreciado; e isto, por sua vez, é causado, em parte, pela entrada de componentes perversos em seus objetivos sexuais, os quais não ousa satisfazer com a mulher que ele respeita… Assegura-se de prazer sexual completo apenas quando se pode dedicar, sem reservas, a obter satisfação, o que, com sua mulher bem-educada, por exemplo, não se atreve a realizar. É esta a origem de sua necessidade de um objeto sexual depreciado, de uma mulher eticamente inferior, a quem não precise atribuir escrúpulos estéticos, que não o conheça em seu outro círculo de relações sociais e que ali não o possa julgar.”
A seguir, Freud afirma que sobrepujar os ideais de mãe virgem e assexuada são a receita para a felicidade sexual dos homens. O artigo se alonga, mas não é nosso objetivo aqui nos deter nas demais considerações do texto.
E a mulher no século XXI, mudou algo?
Parece que, do ponto de vista histórico, as conquistas são inegáveis. As mulheres estão em toda parte, mas sempre tendo de lutar. Como exemplo, temos que o governo atual (do presidente Lula) implementou a política de igualdade de salários para o mesmo cargo, entre homens e mulheres.
O homem, apenas enquanto ser do sexo masculino, não tem que lutar todos os dias para se fazer respeitar.
Mesmo estando em todos os lugares, a mulher continua tendo de se impor, pois ao mais leve descuido, é novamente colocada em uma posição inferior.
Diante do que foi exposto aqui, tendo o tempo se aproximado do fim, gostaria de deixar para posterior reflexão: Por que o machismo ainda não foi incluído em uma categoria psicopatológica?
Obrigada.
Belo Horizonte, setembro de 2023.
Referências
1 – Matos, M. (2019). A violência política sexista no Brasil: o caso da Presidenta Dilma Rousseff. In: Rosa, R., Safar, G.; Theodoro, L.C., Oliveira, R. & Narciso, R. (Org.). Observando as desigualdades de gênero e raça nas dinâmicas sociais em Minas Gerais. Belo Horizonte/MG: Instituto Cultural Boa Esperança, 1, 180-231.
2 – Matos, M. (2021). A violência política sexista, racista e interseccional: mapeando conceitos da violência política contra as mulheres. In: D’Ávila, M. (Org.). Sempre Foi sobre Nós: Relatos sobre a Violência Política de Gênero no Brasil. Porto Alegre/RS: Instituto E Se Fosse Você, 1, 210-227.
3 – Beauvoir, S. (1949-1980). O Segundo Sexo. 4a. ed. Milliet Sérgio (trad.). Rio de Janeiro/RJ: Nova Fronteira.
4 – Foucault, M. (1997). Vigiar e Punir. Petrópolis/RJ: Vozes.
5 – Rodrigues, M. (2006). Michel Foucault sem espelhos: um pensador proto pós-moderno. (Tese de doutorado). Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
6 – G1/Globo (2023, março). Monitor da Violência. Recuperado de https://g1. globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2023/03/08/brasil-bate–recorde-de-feminicidios-em-2022-com-uma-mulher-morta-a-cada-6-horas.ghtml
7 – Jornal Estado de Minas.(2023, julho). Pedidos de Socorro. Violência doméstica: MG é o 3° estado com mais ligações pedindo socorro.Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Recuperado de https://www.em.com.br/ app/noticia/ gerais/ 2023/07/20/internagerais,1523002/violência domestica-mg-e-o-3-estado-com-mais-ligacoes-pedindo-socorro.shtml
8 – Jornal Brasil de Fato. (2023, agosto). [Título] Recuperado de https://www. brasildefato.com.br/
9 – Butler, J. (2021). Discurso de ódio, uma política do performativo. São Paulo/SP: UNESP.
10 – Freud, S. (1912-2013). Psicologia do Amor II. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, XI, Rio de Janeiro/RJ: Imago.