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ChatGPT virou terapeuta? A ilusão de acolhimento na era da inteligência artificial.

Ana Carolina Alcici
Psicóloga clínica. Psicanalista em formação pela SPRJ. Membro da Trieb Mineira.

 

Muito se tem falado sobre o uso da inteligência artificial (IA) no dia a dia e um fenômeno em particular chama a atenção: pessoas que têm usado o ChatGPT como se fosse um psicólogo. É comum encontrar relatos de quem “conversa” com a IA sobre sentimentos, traumas, crises emocionais, buscando orientações, desabafando ou tentando entender o próprio sofrimento.

Curiosa com isso, perguntei ao próprio ChatGPT como ele age nessas situações. Um trecho da resposta me chamou a atenção:

“Minha resposta é sempre baseada em padrões de linguagem. Eu tento gerar uma resposta que seja acolhedora e sem julgamentos. Mas é importante dizer: eu não tenho acesso ao inconsciente, não capto contradições, não reconheço defesas psíquicas, nem consigo trabalhar o que está nas entrelinhas. Tudo o que eu tenho são palavras no texto.”

Esse trecho traz reflexões. Vivemos numa sociedade que valoriza desempenho, produtividade e controle emocional, onde falar de sofrimento muitas vezes é visto como fraqueza. Os discursos de autoajuda e positividade tóxica reforçam a ideia de que devemos ser autossuficientes e que temos total controle sobre o que pensamos e sentimos. “É só querer.”

Nesse cenário, a IA oferece uma ilusão de acolhimento rápido: respostas cuidadosas, sem julgamentos, sem contradições, sem a imprevisibilidade do encontro com o outro humano. Mas o sofrimento psíquico não se resolve com uma resposta pronta. Ele precisa de tempo, de elaboração, de vínculo. Precisa de alguém que escute de verdade, que tolere o silêncio, as ambiguidades, os afetos. Em um mundo onde o ”eu” reina, a relação verdadeira com o outro exige coragem. E é revolucionária.

O problema da ausência de limites na educação infantil

Isabella Lasmar
Psicóloga clínica. Psicanalista em formação pela SPRJ. Membro da Trieb Mineira.

 

Muitos pais enfrentam dificuldades em sustentar limites na relação com os filhos. Esse impasse, muitas vezes travestido de cuidado ou respeito à individualidade da criança, pode, sob o olhar psicanalítico, revelar conflitos inconscientes mais profundos. A dificuldade em frustrar, em dizer “não”, frequentemente se articula a sentimentos de culpa por ausências, separações, medo da rejeição ou dificuldade de ocupar o lugar de autoridade.

O medo de frustrar não se refere apenas ao desconforto da criança, mas também ao quanto essa frustração ressoa no adulto. Em muitos casos, às vezes de forma inconsciente, os pais buscam reparar dores da própria infância. Outros, pela sobrecarga ou ausência, tendem a compensar concedendo em excesso, como tentativa de manter a conexão, evitar conflitos e desconfortos.

Frustrar um filho também é suportar, como adulto, o sofrimento de vê-lo frustrado. Isso implica trabalhar internamente os próprios afetos e abrir mão da fantasia de ser amado o tempo todo para, de fato, amar com responsabilidade. Mas quando esse sofrimento é intolerável para os pais, é comum que evitem assumir o papel de quem frustra, como se isso os colocassem no lugar de maus ou rejeitadores.

Autoridade não é autoritarismo, e limite não é castigo nem opressão, é cuidado psíquico. O ”não” do adulto oferece à criança a experiência da alteridade: um outro que existe para além dela, que pensa e sente de forma autônoma. Esse encontro é o que permite à criança diferenciar-se, acessar o mundo simbólico e desenvolver recursos para lidar com a realidade. A ausência de limites, por outro lado, produz um vazio de referências. A criança, sem contorno simbólico, vive em um mundo onde tudo é possível, mas nada é seguro.

É justamente o limite claro, firme e afetuoso, que oferece segurança emocional à criança, dando condições para que perceba que há alguém ali que pode conter, organizar, e nomear o que ela ainda não sabe simbolizar. Portanto, o “não” é uma marca estruturante e organizadora do psiquismo, e colocar limites, é um ato de amor.

O Trabalho do Luto

Ana Carolina Alcici
Psicóloga clínica. Psicanalista em formação pela SPRJ. Membro da Trieb Mineira.

 

O luto é a dor esperada e consciente que sentimos quando perdemos alguém ou algo que amamos. Pode ser a morte de uma pessoa querida, o fim de um relacionamento ou até mesmo a perda de uma ideia ou projeto importante. No luto, o mundo parece esvaziado, tudo perde o brilho. É um processo doloroso, sim, mas natural.

Ao longo do texto “Luto e Melancolia”, Freud aborda o trabalho de elaboração do luto e considero essa uma expressão muito precisa para descrever o que vivemos nesse processo. Luto é trabalho: exige energia, consome forças e pode nos afetar em diferentes intensidades. Precisamos reconfigurar nossa percepção do mundo diante da ausência de algo que foi profundamente significativo para nós.

É como se precisássemos desligar, aos poucos, a energia psíquica que estava investida naquele objeto – peça por peça, pedaço por pedaço -, enfrentando a dura verificação da realidade: o objeto amado não está mais aqui. E, para seguir vivendo, precisamos reinvestir essa energia em outros vínculos, outras presenças, outros sentidos. A dor vai, então, lentamente, cedendo lugar à saudade. E o objeto perdido permanece dentro de nós transformado em memória.

Mas, ao pensar no luto como trabalho – lento, custoso, doloroso -, esta é a pergunta que me faço: em uma época que introspecção, silêncio e pausa estão cada vez mais escassos, como estamos lidando com nossos lutos? Será que conseguimos manter o espaço psíquico necessário para que esse trabalho aconteça? Estamos podendo suportar a dor e a angústia que fazem parte do percurso?

Talvez possamos, pouco a pouco, reivindicar o direito de sofrer, de parar, de elaborar, de não estar bem o tempo todo. O luto é um processo vital e precisa de tempo, escuta e cuidado.

Neurose de angústia

Eliane de Andrade
Psicanalista. Membro Efetivo, Didata e Docente da SPRJ. Membro da Trieb Mineira.

 

É muito comum alguém se sentir subitamente mal, estranho, deslocado.

Uma irritabilidade pode estar afetando a pessoa, sem que ela encontre nenhum motivo aparente para isto.

Também é comum que a pessoa esteja ansiosa, esperando por algo que ela não tem a menor ideia do que seja.

Um mal-estar, uma vontade de dar um nome para isto que se está sentindo… e inclusive sintomas físicos.

Desde 1895, Sigmund Freud, o pai da Psicanálise, já havia isolado um quadro que, nos nossos tempos pós-modernos, nos é muito familiar. A angústia, ou sua generalização sintomatológica: a neurose de angústia.

Quadro complexo, com raízes na infância, tratável pela Psicanálise. Afinal, quem quer ficar sentindo angústia toda hora?

A contribuição dos contos de fadas para as manifestações do complexo de Édipo na criança

Isabella Lasmar
Psicóloga clínica. Psicanalista em formação pela SPRJ. Membro da Trieb Mineira.

 

O complexo de Édipo, conforme proposto por Freud, é uma fase do desenvolvimento psicossexual que ocorre na primeira infância, entre os 3 e 6 anos. O primeiro objeto de amor, tanto para a menina quanto para o menino, é a mãe. A partir da constatação da diferença sexual, a menina se ressente com a mãe por esta não ter dado um pênis a ela e volta seu amor para o pai, dando início ao Complexo de Édipo. Já o menino, não muda seu objeto de amor, o que o faz abandonar o desejo incestuoso pela mãe é o medo do pai através da ameaça de castração. Em ambos os casos, a criança vê o genitor do mesmo sexo como um rival. O menino sente ciúmes e hostilidade em relação ao pai, pois o vê como um competidor pelo afeto da mãe e a menina, da mesma forma, rivaliza com a mãe. Freud acreditava que a resolução bem-sucedida do complexo de Édipo ocorre quando a criança começa a identificar-se com o genitor do mesmo sexo, e esse processo de identificação ajuda a criança a internalizar as normas e valores da sociedade, formando o superego, que é a parte da personalidade responsável pela moralidade e pelos padrões éticos.

Melanie Klein (1928) trouxe outra visão sobre o complexo de Édipo, diferenciando-se  das ideias de Freud. Para ela, o complexo edípico começa muito mais cedo, por volta dos 6 meses a 2 anos de idade. Enquanto para Freud o complexo de Édipo se inicia a partir da constatação da diferença sexual, em Klein, as tendências edipianas se manifestam como consequência da frustração vivida pela criança com o desmame. A primeira castração sofrida é o corte do cordão umbilical. Quando a criança se separa do corpo da mãe ao nascer, é através da aproximação mental e física com o seio gratificante que ela readquire o sentimento perdido dessa segurança da unidade pré-natal com a mãe.

No desenvolvimento infantil, através do desmame, a criança sofre a primeira grande frustração e, posteriormente, essa experiência é reforçada pelas frustrações anais sofridas durante o treinamento dos hábitos de higiene, através do controle dos esfíncteres. Por último, há a constatação da diferença anatômica entre os sexos, influenciando de forma determinante o psiquismo infantil.

Klein enfatizou que, desde muito cedo, as crianças experimentam sentimentos intensos de ciúme e inveja, especialmente em relação aos pais. Ela acreditava que essas emoções são centrais para o desenvolvimento do complexo de Édipo. Dessa maneira, a criança sente inveja do pai, por causa da relação que ele tem com a mãe e vice-versa.

Outro aspecto importante na teoria de Klein é a posição depressiva, que ocorre quando a criança começa a perceber que os pais são figuras separadas e independentes, e não apenas extensões de si mesma. Essa percepção traz sentimentos de culpa e a necessidade de reparação de qualquer dano imaginário causado por seus sentimentos agressivos. Klein acreditava que a resolução dessa posição depressiva é fundamental para a resolução do complexo de Édipo e para a integração do superego, tornando-o menos rígido e mais equilibrado ao longo do desenvolvimento.

Além disso, Klein sugeriu que o complexo de Édipo não é uma fase que simplesmente termina, mas é algo que continua a influenciar o desenvolvimento emocional no decorrer da vida. Ela também destacou a importância das fantasias inconscientes e das ansiedades primitivas na formação do superego.

Os contos de fadas ajudam as crianças a enfrentar essas manifestações do complexo de Édipo. Conforme exposto, durante o conflito edípico, o menino sente ódio pelo pai, pois acredita que ele impede o amor exclusivo da mãe. Ele deseja ser visto pela mãe como o grande herói, o que implica que, de alguma forma, ele precisa afastar o pai. No entanto, essa ideia gera ansiedade, pois o menino também ama e precisa do pai, e teme que ele descubra seus desejos e se vingue terrivelmente.

Segundo Bettelheim (2023), dizer a um menino que ele crescerá, se casará e será como o pai pode aliviar a pressão imediata, mas os contos de fadas oferecem uma maneira de lidar com esses conflitos, sugerindo fantasias que a criança não poderia criar sozinha.

Nesse sentido, contos de fadas frequentemente narram a história de um menino não reconhecido que sai pelo mundo e alcança grande sucesso. Os problemas edípicos das meninas são diferentes, e as histórias que as ajudam a enfrentar esses conflitos têm características distintas. Embora os detalhes variem, a trama básica é a mesma: um herói improvável supera desafios, mata dragões, resolve enigmas e, com sua inteligência e bondade, liberta a princesa, casa-se com ela e vive feliz para sempre. O menino se vê como o herói principal.

A história sugere que não é o pai que impede a exclusividade com a mãe, mas um dragão malvado, e o objetivo é derrotar esse dragão. Além disso, a história valida o sentimento do menino de que a mulher mais desejável está presa por uma figura maligna, implicando que não é a mãe que ele deseja, mas uma mulher maravilhosa que ele ainda encontrará. A história também reforça a ideia de que a mulher maravilhosa (mãe) não está com a figura maligna por vontade própria, mas preferiria estar com um jovem herói (o menino). O herói, sempre jovem e inocente, representa a inocência da criança, permitindo que ela se veja como um herói orgulhoso, sem culpa por suas fantasias. É comum que, uma vez que o dragão é derrotado e a princesa é libertada, a história termine com o herói e a amada vivendo “felizes para sempre”, sem mais detalhes sobre a vida futura. Nos contos de fadas, o ideal do menino é que ele e sua “princesa” (mamãe) vivam juntos, satisfeitos e felizes para sempre.

Como os problemas edípicos da menina são diferentes dos do menino, as histórias que a ajudam a enfrentar sua situação edípica têm um caráter diferente. O que impede a existência edípica feliz da menina com seu pai é uma mulher mais velha e mal-intencionada (a mãe). No entanto, como a menina ainda deseja o carinho da mãe, existe uma figura feminina benevolente em sua memória ou nos contos de fadas, cuja imagem feliz é mantida intacta, embora inativa. A menina se vê como uma jovem linda, uma princesa, presa por uma figura feminina malvada e egoísta, sem acesso ao homem amado. O pai da princesa aprisionada é retratado como benevolente, mas incapaz de resgatar sua filha adorada. Em “Rapunzel”, é uma promessa que o impede. Em “Cinderela” e “Branca de Neve”, ele parece incapaz de enfrentar a madrasta poderosa.

O menino, que se sente ameaçado pelo pai devido ao desejo de substituí-lo nas atenções da mãe, projeta o pai como um monstro ameaçador. Isso também prova ao menino que o pai é um rival perigoso, pois, caso contrário, ele não seria tão ameaçador. Como a mulher desejada está presa pelo “dragão”, o menino acredita que apenas a força bruta impede essa mulher adorável (mãe) de se unir a ele, o jovem herói.

Nos contos de fadas que ajudam a menina a entender seus sentimentos, são os ciúmes intensos da madrasta (mãe má) ou da feiticeira que impedem o amante de encontrar a princesa. Esse ciúme mostra que a mulher mais velha sabe que a jovem é a preferida, mais amável e mais digna de ser amada.

Enquanto o menino edípico não deseja qualquer criança que interfira no envolvimento completo da mãe com ele, a situação é diferente para a menina edípica. Ela realmente deseja dar ao pai o presente amoroso de ser mãe de seus filhos.

Na vida familiar comum, o pai está frequentemente ausente, enquanto a mãe, que deu à luz e criou o filho, continua fortemente envolvida nos cuidados da criança. Assim, um menino pode facilmente imaginar que o pai não é tão importante em sua vida. Já uma menina não consegue conceber a ideia de dispensar os cuidados da mãe. Por isso, a substituição de um pai originalmente “bom” por um padrasto é rara, enquanto a presença de uma madrasta malvada é frequente. Como os pais geralmente dão menos atenção à criança, não há uma decepção tão grande quando o pai começa a interferir ou a fazer exigências. Portanto, o pai que bloqueia os desejos edípicos do menino não é visto como uma figura má dentro de casa, ao contrário da mãe. Em vez disso, o menino projeta suas frustrações e ansiedades em um gigante, monstro ou dragão.

Melanie Klein, ao descrever a posição esquizo-paranoide, afirma que inicialmente o bebê vê a mãe como duas entidades separadas: uma que satisfaz suas necessidades (mãe boa) e outra que frustra seus desejos (mãe má). Dessa maneira, a criança projeta seus impulsos agressivos em objetos externos para lidar com a ansiedade persecutória. Associando a fantasia edípica da menina aos contos de fadas, pode-se observar que a mãe é dividida em duas figuras: a mãe boa e maravilhosa, pré-edípica, e a madrasta malvada edípica.  A mãe boa, na fantasia, nunca teria ciúmes da filha ou impediria o príncipe (pai) e a jovem de viverem juntos e felizes. Assim, para a menina, a crença na bondade da mãe pré-edípica e a lealdade profunda a ela tendem a reduzir a culpa em relação ao que a menina deseja que aconteça à madrasta que está no seu caminho.

Outros conceitos importantes na obra de Klein e que estão muito presentes nos contos de fadas é o splitting e a identificação projetiva. O primeiro é um mecanismo de defesa onde a mente divide objetos (e pessoas) em partes boas e más, sem integrá-las. É uma forma de proteger o ego de angústias insuportáveis, especialmente nos primeiros estágios da vida. A identificação projetiva é quando uma pessoa projeta partes de si mesma em outra pessoa, e depois se identifica com essa projeção. Isso é mais do que simplesmente ver as próprias características nos outros, pois envolve tentar controlar ou influenciar a outra pessoa para que ela realmente incorpore essas projeções. Isso é bastante explorado nos contos de fadas infantis, onde os personagens frequentemente encarnam elementos do psiquismo da criança, ajudando a processar e integrar esses sentimentos complexos.

Por exemplo, na história de “Cinderela”, a madrasta má e as irmãs representariam as partes da personalidade da própria protagonista que ela considera ameaçadoras ou indesejáveis. Podem ser vistas como rivais femininas no imaginário da criança, projetando a competição e a inveja associadas ao complexo de Édipo. Quando Cinderela supera suas adversidades com a ajuda de uma figura mágica (a fada madrinha), isso simboliza a integração dos aspectos positivos e a superação dos negativos.

No conto de “João e Maria”, podemos identificar a figura da bruxa como uma projeção dos sentimentos de medo e rivalidade que surgem com o complexo de Édipo. A bruxa, que aprisiona as crianças, pode simbolizar a mãe castradora na mente infantil, um obstáculo a ser superado para alcançar a independência.

Outro exemplo é “A Bela e a Fera”. A Fera pode ser vista como uma projeção dos aspectos sombrios do pai. A relação complexa entre Bela e a Fera é uma forma de trabalhar esses sentimentos ambivalentes e a aceitação das características do pai que a criança inicialmente considera monstruosas.

Derrotar o dragão, tão presente nos contos infantis, diz respeito à parte malvada e agressiva dentro da criança projetada no mundo externo, personificada no dragão. É uma tentativa de proteger seus objetos bons no mundo interno (pai ou mãe, ou pais combinados amorosamente dentro de si). Os dois mecanismos também são vistos na mãe malvada (madrasta), aquela que frustra, e na mãe boa, que acolhe e satisfaz as necessidades da criança. Podemos ver a presença desses mecanismos também quando a fantasia inconsciente da menina de poder vencer a madrasta aponta para vencer essa visão de mãe distorcida por sentimentos persecutórios dentro dela. Com isso, pode estabelecer, então, uma vivência interna de uma mãe mais duradoura e amorosa.

O menino vence o dragão e a menina vence a bruxa malvada, salvos pelas figuras idealizadas. É importante ressaltar que o splitting normal dá à criança a capacidade de discriminar o bom do mal e a partir disso proteger os objetos bons dentro da sua mente.

Esses contos servem não apenas como entretenimento, mas também como ferramentas simbólicas para ajudar as crianças a processarem emoções complexas e conflitos internos. Assim, os contos de fadas funcionam como uma espécie de teatro psicológico onde a identificação projetiva é continuamente encenada e resolvida, permitindo que as crianças processem e trabalhem seus conflitos internos de forma segura.

Dessa maneira, tanto meninas quanto meninos, graças aos contos de fadas, podem ter o melhor dos dois mundos: podem desfrutar plenamente das satisfações edípicas na fantasia e na vida real, mantendo boas relações com ambos os pais.

Para o menino, se a mãe o decepciona, há sempre a princesa do conto de fadas em sua mente, aquela mulher maravilhosa do futuro que compensará todas as dificuldades presentes e cuja lembrança torna mais fácil suportar esses desafios. Se o pai dá menos atenção à filha do que ela deseja, ela pode suportar essa adversidade porque um dia chegará um príncipe que ela preferirá a todos os outros.

Como tudo acontece em um mundo de fantasia, a criança não precisa se sentir culpada ou ansiosa ao imaginar o pai como um dragão ou gigante malvado, ou a mãe como uma madrasta ou bruxa cruel. A menina pode amar seu pai real, pois seu ressentimento por ele preferir a mãe é explicado pela ineficácia dele, como nos contos de fadas, onde ele é impotente diante de forças superiores. Isso não a impede de encontrar seu príncipe. A menina pode amar ainda mais sua mãe, pois deposita toda sua raiva na figura da mãe-competidora, que recebe o que merece, como a madrasta de Branca de Neve. O menino pode amar ainda mais seu pai real depois de transferir sua raiva para a fantasia de derrotar o dragão ou gigante malvado.

Essas fantasias, que seriam difíceis para uma criança criar sozinha, ajudam muito a superar a angústia edípica. Além disso, as mães não podem aceitar os desejos dos meninos de eliminar o pai e casar-se com a mãe, mas podem participar com prazer da fantasia onde o filho se imagina como o matador de dragões que conquista a princesa. A mãe também pode encorajar as fantasias da filha sobre o príncipe encantado com quem se casará, ajudando-a a acreditar em uma solução feliz, apesar das decepções atuais. Assim, em vez de perder a mãe devido ao desejo edípico pelo pai, a filha percebe que a mãe não só aprova esses desejos disfarçados, mas até deseja que se realizem. Através dos contos de fadas, os pais podem se unir aos filhos em todas as viagens de fantasia, enquanto mantêm, na vida real, a importante função de cumprir as tarefas parentais.

Dessa forma, a criança obtém o melhor dos dois mundos, o que é necessário para se tornar um adulto seguro. Na fantasia, a menina pode vencer a madrasta, cujos esforços para impedir sua felicidade com o príncipe fracassam. O menino pode matar o dragão e conseguir o que deseja em uma terra distante. Ao mesmo tempo, tanto o menino quanto a menina podem manter em casa o pai real como protetor e a mãe real que fornece todos os cuidados e satisfações de que precisam. Como fica claro que a matança do dragão e o casamento com a princesa prisioneira, ou o encontro com o príncipe encantado e a punição da bruxa malvada, ocorrem em tempos e lugares distantes, a criança normal nunca confunde isso com a realidade.

As histórias de conflitos edípicos são típicas da maioria dos contos de fadas que ampliam os interesses da criança além da família próxima. Para dar seus primeiros passos em direção a uma individualidade madura, a criança deve começar a encarar o mundo mais amplo. Se não recebe apoio dos pais em sua exploração real e imaginária do mundo fora de casa, corre o risco de empobrecer o desenvolvimento de sua personalidade.

A aprendizagem infantil envolve a criança em tomar decisões sobre como se mover de forma independente, no momento certo, e em direção às áreas da vida que ela escolhe. Os contos de fadas auxiliam nesse processo ao transmitir, de maneira implícita e simbólica, quais são as tarefas apropriadas para cada idade, como lidar com sentimentos ambivalentes em relação aos pais e como controlar esse turbilhão de emoções. Além disso, eles alertam sobre possíveis armadilhas que a criança pode encontrar e evitar, sempre prometendo um desfecho positivo.

 

 

 Referências:

BETTELHEIM, B. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2023. 448p.

KLEIN, M. Primeiras fases do complexo de Édipo: 1928. In: KLEIN, M. Contribuições à psicanálise. São Paulo: Mestre Jou, 1970. p. 253-267.

Eu Soberano X Nós

Eliane de Andrade
Psicanalista. Membro Efetivo, Didata e Docente da SPRJ. Membro da Trieb Mineira.

 

Para que um ser humano necessita de outro ser humano?

Essa pergunta que, para alguns de nós, pode parecer absurda, para outros de nós é uma dúvida excruciante que nos acompanha durante toda a vida. Até onde conseguimos ir nenhum ser humano assim se torna, sem ter   tido   um   outro   da   mesma   espécie a  auxiliá-lo desde  as primeiras horas de existência.

“Existirmos, a que será que se destina
Pois quando tu me deste a rosa pequenina,
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino infeliz não se nos ilumina
Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria vida era tão fina
E éramos olharmo-nos intacta retina
A cajuína, cristalina em Teresina.”
Caetano Veloso – Cajuína – 1979

Sim, a mãe pode ser um homem, o que importa é que pode ser mãe que cuida, que vela, que tem dentro de si o desejo de que o menininho ou a menininha se  tornem lindos e donos de seus  corpos. Corpos eróticos.

A psicanálise sabe que tudo começa antes da concepção. Mas tudo termina em sociedade. E no meio do caminho, o que acontece?

Bom, no ínterim, vem a sociedade…

Ela é composta de outras pessoas, de gente diferente de nós, de nossos pais, de gente esquisita. Aprendemos ou não, em casa, que essas pessoas são nossos semelhantes.

A palavra “semelhante” é bem boa: parece comigo, mas não sou eu!

Já aponta para uma diferença e uma igualdade. E o que fazer com tais pessoas?

A tendência natural do narcisista é utilizar-se de todo e qualquer recurso que a vida lhe ofereça. Para ele, o mundo foi feito para ser desfrutado e não há  campanha ecológica que consiga gerar a ideia de coletivo, finitude, desgaste. Assim, quando falamos de coletivo, estamos falando de algo que só  pode se construir na mente de um não-narcisista. A palavra coletivo implica uma noção de “nós”,  do  outro  que   não sou eu, mas  que,  sendo meu semelhante,  faz-me ser como ele,   guardadas   as   diferenças individuais, mas relevadas as semelhanças. Também gosto muito da palavra “corporativismo” que indica um “espírito de corpo”, espírito de grupo, identificação grupal.

Então volta a questão: por que alguns de nós conseguimos ter um grupo de trabalho, fazermos parte de um grupo de ações, termos amigos e causas sociais e muitos de nós jamais encontram dentro de si a possibilidade de tal coisa?

Vejam que não me refiro à farra, à festa, à balada, ao boteco, não me refiro ao entorpecimento maravilhoso que se dá no estádio de futebol.

Tudo isso é muito prazeroso!  Tudo tem descarga de tensão envolvida, mas nada disso gera o espírito de corpo!

A camisa do meu time de futebol, vista em um desconhecido na rua, não me faz sentir empatia por ele. Apenas me faz ficar contente de vê-la sem maiores preocupações com quem a porta.

Então, na vida psíquica das pessoas, existe um componente muito importante e pouco falado que é a identificação coletiva. Nós, sindicalistas, conhecemos isso com o nome de política. Essa, a definição de um estado de identificação do nosso mundo ao redor que permite averiguar qual a vantagem e a desvantagem de pertencer a um determinado grupo. Quais as condições de vida dadas a esse grupo, quanto de ética e justiça em que tal grupo vive?

Quando temos um sintoma psíquico, Freud nos ensinou que ele aconteceu porque   a   energia   que   temos   em   nossa   mente   foi desviada do seu uso apropriado e canalizada para uma resposta não adequada, gerando sofrimento inútil. A esse desvio e mau uso da energia psíquica, Freud nomeou de adoecimento da “economia psíquica”, num claro uso do entendimento da física e das ciências da economia. Afinal, economia é a arte de utilizar os recursos de maneira específica para que não falte. E assim, uma sociedade que os utiliza de forma a que alguns tenham os recursos com abundância e outros tenham abundância de escassez de recursos, é uma sociedade que tem uma economia perversa.

E perversão é o uso da energia para fins pouco sociais, pouco humanos, nada solidários. Perverso é o que escapa à lei, à ordem simbólica, o que só pensa em si e despreza o outro.

Então, o mecanismo da identificação, aquele que permite que se espelhem os ideais de outra pessoa em mim, são tamponados: só o espelho atrai o perverso, somente seus interesses interessam. A outra pessoa, o resto da humanidade, o planeta… não existem verdadeiramente.

Temos aí o que poderíamos considerar o Eu Soberano! Eu, só Eu, tudo para o Eu, existe algo além do Eu?

E quem são as pessoas que conseguem se identificar com o Nós?

Geralmente são aquelas que têm desde o início da vida um olhar para o diferente, para o que está ao lado, a curiosidade sobre o Outro, a vontade de estar em grupo para criar algo junto! Em algum lugar, isso é conhecido como o nome de grupo, coletivo, equipe, pátria, turma.

Mas o que deu errado , por exemplo, com aqueles que no estádio de futebol matam, no país dão golpe, traem o par, preferem o conforto à luta e nunca pensam que fazem parte de um todo?

É possível desenvolver a capacidade de se sentir dentro de uma classe de pessoas? É possível desenvolver a preocupação social e o desejo de igualdade entre os povos e pessoas?

Só e somente se houver uma matriz não narcisista na pessoa. Do contrário, sempre   haverá   a   impossibilidade   de   identificação grupal, o hedonismo, o puro egoísmo.

Educamos e fazemos política para divulgar a ideia do grupo, da pátria para todos, da economia distribuindo os recursos para todos. Não temos conseguido como desejávamos em virtude da dificuldade de tratar psicologicamente as  pessoas,  de   gerar pessoas mais amorosas e empáticas e de encontrar uma conduta para aqueles que nascem totalmente impossibilitados de serem amorosos.

A luta contra o Eu Soberano é não só psicanalítica, sociológica, política progressista, mas também educacional: desejar ter filhos tem a ver com poder tê-los. Ser capaz de levá-los às verdadeiras condições de socialização.

O ser humano não é mais um ser animal.   Ele é sobretudo simbólico e , por isso, precisa pensar o que gera, o que eleva, o objetivo de absolutamente tudo o que faz!

Poder abrir mão de ser, em tudo, igual ao meu vizinho, por eu perceber minhas   limitações de toda  ordem,  sejam  elas econômicas,  biológicas, psicopatológicas,   sociais, é a maneira como cada um de nós pode contribuir para que haja compromisso com a vida em sociedade neste planeta. Mas cada  uma  das decisões acima citadas leva a um posicionamento mais restrito de vida, a uma escolha diferente da escolha da grande massa social.

Ser diferente pode ser exatamente ser saudável. Ser igual a todos pode ser exatamente ser adoecido.
E somos todos iguais!

Masculinidades Tóxicas – Apontamentos sobre o significado e a (de)construção da masculinidade

Leonardo Siqueira Araújo
Psicanalista. Membro Associado da SPRJ. Membro da Trieb Mineira.

 

Vivemos em um país machista. A afirmação parece simples, porém não deixa de ser refutada em muitos momentos. Segundo dados do IBGE, no primeiro semestre de 2022, tivemos 31 mil denúncias de violência doméstica contra a mulher, além de 699 casos de feminicídio, uma taxa assustadora de quatro mulheres mortas por dia. Além disso, pipocam cotidianamente notícias sobre assédio sexual, inclusive em searas públicas, envolvendo, por exemplo, deputadas, como o caso de Isa Penna na Assembleia Legislativa de São Paulo. Ainda, temos casos como o dos coaches de masculinidade, que supostamente “ensinam” os homens a tratar mulheres como objetos, apontando que devem sempre se portar perante a elas como grandes dominadores, inclusive usando do desprezo aparente como arma de conquista.

Sob um ponto de vista sociológico, pode-se explicar uma parcela desse tipo de comportamento a partir dos papeis tradicionais reservados a homens e mulheres ao longo do tempo: as mulheres relegadas a uma tarefa considerada de menor valor, os cuidados da casa e dos filhos, enquanto os homens deveriam estar fora de casa ganhando o sustento do lar. Esse quadro mudou de forma marcante, principalmente a partir da segunda metade do século XX, por uma necessidade econômica da participação feminina no mercado de trabalho, e também, mais recentemente, com as enormes conquistas obtidas pelos movimentos sociais. A partir de então, uma movimentação reacionária também ocorreu. Podemos colocar aqui alguns exemplos. Temos os “Incels” (celibatários involuntários, numa abreviação em língua inglesa). Seriam eles supostamente homens que não conseguem entrar em um relacionamento com uma mulher, ou mesmo ter qualquer tipo de contato sexual, o que ocorreria porque as mulheres teriam saído de seu papel devido, submissas e passivas. Isso teria causado uma espécie de desequilíbrio que faria com que homens como eles deixassem de ser desejáveis. Além disso, temos os grupos dos “red pills”, inspirados na cena do filme Matrix – realizado por duas mulheres trans – onde um personagem oferece ao protagonista uma escolha entre a pílula azul, que lhe asseguraria a continuação na vida simulada, e a pílula vermelha (a red pill), que lhe permitiria ver o mundo verdadeiro fora da Matrix. Assim, esses homens creem serem capazes de enxergar a realidade do mundo da dita “ditadura feminista”. Vale dizer que não é de forma alguma raro perceber, também nesses grupos, outras formas de preconceito, como o racismo e o classismo, além de outras ideologias totalitárias ou fascistas.

Acredito que o que parece estar em questão, não apenas nesses movimentos reacionários, mas na sociedade em geral, é o papel do homem. Mais: não apenas o papel do homem, mas a questão sobre o que é um homem, o que é a masculinidade, e como ela é construída. Nancy Chodorow, uma psicanalista americana, citada num artigo de Brady (2006), observou que o “enigma da masculinidade” não recebeu a mesma atenção que sua contraparte feminina. A masculinidade foi presumida como sendo a norma, a partir de Freud, o pênis assumindo o centro da formação da sexualidade. De fato, também percebo, observando o discurso social corrente, uma notável falta de clareza sobre o que constitui um homem. Ou talvez poderia dizer, vemos muito sobre o que constitui um homem a partir da negativa: alguém que não se atrai sexualmente por outros homens; alguém que não fala sobre suas sensibilidades; alguém que não se veste da forma x ou y, etc.

A masculinidade está em crise. Por um lado, o papel tradicional do homem – único provedor, único símbolo de potência e contato com o mundo externo – simplesmente já não consegue mais se sustentar. As tentativas, por vezes ridículas de prova do contrário são só reforços cabais desse fato. Me lembro aqui dos vídeos onde homens de meia idade e barriga proeminente – um marmanjo criado, eu diria – posam com uma arma imitando movimentos de equipes policiais. Aliás, nada oferece prova melhor dessa crise do que observar quem são os objetos oferecidos como líderes “masculinos de verdade”. Por outro lado, o ideal do “homem desconstruído” também já se mostrou extremamente falho, e já se presta também a seu próprio tipo de papel ridículo (vide esquerdomachos). De forma que nos vemos, nós homens, com dificuldade de se esquivar da questão incômoda: para que serve um homem?

Fazendo uma crítica teórica e histórica, somos impelidos a questionar se esse processo de produção da identidade masculina não seria particularmente exposto a algumas graves fragilidades, principalmente egóicas, sobre de onde vem seu valor-próprio, o senso de poder e de autoestima e sobre como isso se articula nas suas relações com as outras pessoas. Parafraseando Benjamin (2015), que disse que a visão de Freud da feminilidade lembrava o ponto de vista do “menino edípico”, em muitos momentos pareceria que a própria visão clássica da masculinidade é uma construção de meninos edípicos. Minha tese, que não poderia deixar de se apoiar na teoria psicanalítica é de que podemos identificar fontes da masculinidade tóxica a partir dessas diversas brechas e vulnerabilidades na formação de um homem. Naturalmente, não tenho a pretensão nem a capacidade de abarcar o todo dessa temática, mas gostaria de fazer certos apontamentos em diálogo com alguns autores.

A primeira questão que gostaria de levantar diz respeito às mudanças no entendimento do Édipo. Uma mudança marcante na teoria psicanalítica a esse respeito foi um foco maior, principalmente a partir de Melanie Klein, sobre as fases pré-edípicas do desenvolvimento, com foco sobre as complexas relações do bebê com a mãe. Inicialmente, com Freud, o Édipo masculino foi imaginado como um momento atravessado pelo menino, onde haveria um investimento objetal na figura materna e uma identificação com a figura paterna. A partir da intensificação do impulso sexual em relação à mãe, o pai surgiria como a figura de separação, colocando o menino em uma postura ambivalente em relação a ele, simultaneamente de identificação e de rivalidade. A descoberta da diferença sexual possui aqui um papel preponderante, a figura da mãe sendo desvalorizada pela percepção de que ela não possui um pênis, e de que poderia tê-lo perdido por algum motivo. Assim, surge a angústia de castração, a partir do medo do menino de também sofrer uma punição e ter seu pênis tirado de si. A solução normal do Édipo, segundo Freud (1923), passaria pelo abandono da catexia amorosa sexual da mãe, substituída pela intensificação da identificação com o pai.

Chodorow, no mesmo artigo citado acima (2006), aponta o surgimento de um “matricentrismo” teórico, contribuindo para um entendimento mais profundo da relação inicial da mãe com seu bebê, e das intensas comunicações não-verbais durante o período pré-edípico. Outra psicanalista, Ethel Spector Person, no mesmo artigo, aponta que esse estudo das relações iniciais trouxe ideias que questionam a primazia fálica, e a inveja do pênis, como fatores preponderantes. Aponta que Melanie Klein “sugeria que meninos sofrem de inveja pré-edípica dos órgãos reprodutivos femininos, que ela chamou de locais de ‘receptividade e plenitude’” (p.1196). Essa ideia seria seguida por Chasseguet-Smirgel, que postula que podemos entender que a visão de Freud da feminilidade como o produto de uma deficiência na verdade revela a necessidade do menino de “elaborar sentimentos de desamparo em resposta ao poder de sua mãe” (p. 1196). Bejamin (2015) complementa, argumentando que com essas mudanças teóricas percebemos que o menino é quem precisa abandonar sua primeira identificação, que é com a mãe. Isso faz com que a separação da mãe adquira um caráter mais problemático para os meninos.

Essa observação parece bem em sintonia com o tema que estamos discutindo, por revelar que, por trás do que poderíamos chamar de uma identidade afirmativa masculina (o poder do pênis possuído), existe um medo pregresso que ficou obscurecido. A resolução desses sentimentos já influencia sobremaneira a atitude do futuro homem sobre as mulheres. Person sugere que, se esse medo da mãe não for elaborado, “pode se consolidar em uma formação reativa, cuja evidência visível é a punição ou menosprezo da mãe por parte do menino. Essa dinâmica pré-edípica pode estar na raiz da notória misoginia observada em alguns homens.” (p.1196).

(Aqui vou recuperar, com pequenas alterações, uma parte do argumento do texto escrito para o Observatório Psicanalítico da FEBRAPSI, que se articula com a questão). Freud, no texto “Um tipo de escolha especial feita pelos homens”, de 1910, analisa algumas características de um tipo de dinâmica relacional de seus pacientes, dentre elas, o que chamou de “amor à prostituta”, ou o desejo por mulheres que denominou “de má reputação”. Dentro de sua afirmação de que esse tipo de escolha está ligado às fixações infantis à figura da mãe, relaciona esse aspecto ao desejo e à necessidade de poder salvar a pessoa amada. Além disso – e aqui está a observação que gostaria de destacar – liga essa necessidade ao intenso impacto que lhe causa – ao homem – a ideia de que deve sua vida aos pais, ou de que a mãe lhe deu a vida. Daqui decorrem duas ideias: uma ligada à gratidão e/ou rivalidade com a figura paterna, fonte de grandes fantasias que irei abordar mais adiante, e uma ligada à gratidão e/ou dívida em relação à mãe.

Em conexão com o tema, Winnicott (1957) escreve sobre seu sentimento de que o papel da mãe na sociedade passa de forma muito silenciosa, e se pergunta sobre as consequências disso. “Será que o não-reconhecimento da contribuição da mãe devotada se deve justamente ao fato de ela ser imensa?” pergunta. Isso viria justamente do fato de que todo homem e toda mulher que se sentem sadios, que se sentem uma pessoa no mundo, tem uma “dívida infinita” com uma mulher. Dirá ele que se pudéssemos reconhecer a contribuição de todas essas mães para cada um de nós e para a sociedade, o que aconteceria seria a diminuição de um medo, justamente o medo da dependência. E acrescenta que, caso isso não ocorra, esse medo pode muito bem tomar a forma de “um medo de MULHER” (as maiúsculas são dele), ou seus derivados, que sempre incluirão o medo da dominação. E acrescenta:

“Infelizmente, o medo da dominação não leva muitas pessoas a evitarem ser dominados; ao contrário, encaminha-as em direção a uma dominação específica ou escolhida. Realmente, caso se estudasse a psicologia do ditador, poder-se-ia esperar descobrir, entre outras coisas, que em sua própria luta pessoal ele está tentando controlar a mulher cuja dominação ele inconscientemente teme, tentando controlá-la através de um enclausuramento, agindo por ela, e por sua vez demandando sujeição e “amor” totais”. (p.119)

Essa observação encontra-se em absoluta consonância com as dos demais autores. Benjamin, por exemplo, observa que o “descaso paternal pelo vínculo do pequeno menino com a mãe gera o dissociado, porém fortemente danoso, desprezo patriarcal pela mulher” (2015, p.274). Não seria esse ditador de Winnicott justamente o protótipo do homem machista? Não poderíamos ver, oculta sobre essa necessidade de desvalorização da mulher – e do feminino em geral – o grande medo da dependência afetiva e da dominação? Talvez esses homens vejam, como uma sombra por trás de cada mulher que encontram, o fantasma do abandono mal resolvido de seu vínculo inicial com a mãe. Também se esclarece um pouco mais que os mecanismos de desprezo e desvalorização, tão característicos do machismo, seriam reações inconscientes a esse medo, uma formação reativa.

A esse respeito, podemos acrescentar ainda outro ponto. Bennet Simon, citado no artigo de Brady (2006), também comenta sobre as fantasias masculinas sobre os poderes da mulher/mãe. Comenta que “na fantasia à mulher/mãe é dado o poder de conceder invulnerabilidade e imortalidade ao menino/bebê. O poder da mãe de humilhar também é visto como muito maior” (p.1198). Chodorow, no mesmo artigo, também comenta, a partir de Karen Horney, que “a sexualidade masculina inclui uma vulnerabilidade à mortificação e humilhação narcísica por parte da mulher, uma vulnerabilidade que possui um papel definidor e central na masculinidade normativa” (p.1203). Mas gostaria de destacar algo que Simon coloca como um medo da feminilização e infantilização dos homens, e do fato de que alguns deles possuem amantes como uma forma de não se sentirem “esterilizados”. Encontrei já algumas vezes, inclusive na clínica, esse medo sob a forma do medo da “domesticação”. O homem domesticado seria o homem que perdeu sua pretensa capacidade masculina, e em revolta contra isso, ele sente que precisa “aprontar”: ter um caso extraconjugal, discordar da parceira e executar um pretenso movimento de descaso em relação à posição dela para reafirmar seu estatuto de não castrado (o termo “patroa”, ou “polícia”, muito utilizado para referir-se à esposa, me vem em mente). Simon comenta que “o pênis ativo, continuamente ereto e potente é necessário como um garantidor da imortalidade, de não ser extinguido ou esquecido” (p.1198). O que me pareceu curioso observando esses casos era como, ao assumir esse comportamento de aparente revolta, os homens efetivamente instituem um distanciamento em relação à mulher no relacionamento e, principalmente, renunciam à possibilidade de uma participação ativa (masculina?), a possibilidade de concordar e discordar com amor, eu diria. Porém, parece claro que isso colocaria o homem em contato com medos e conflitos profundos. Percebemos aqui um fator importante, que gostaria de reforçar, sobre como o comportamento de rivalidade em relação à mulher, principalmente em relação à parceira, apoia-se sobre intensas fantasias de desvalorização. Simon propõe que utilizemos os termos ansiedade de diminuição, ou de rebaixamento, juntamente com a já conhecida ansiedade de castração.

Aqui gostaria de levantar outra questão, colocada por vários autores, relacionada a uma forma de defesa ou compensação desses medos: o narcisismo fálico. Podemos entende-lo, em parte, como uma formação relacionada às fantasias de rivalidade com o pai. Benjamin (2015) questiona o lugar do pai, postulando uma forma de amor que não se limita ao que ela critica na relação edípica, “baseada na estrita separação entre ser e ter”, e propondo o que chamou de amor identificatório. Segundo ela, ele seria relacionado à necessidade homoerótica de “ir ao encontro da necessidade de espelhamento, de mútua idealização e reconhecimento, de empoderar, desenvolver uma grandiosidade lúdica, e de superar a deflação e vergonha de não se sentir grande, nem poderoso…” (p.273). A rejeição desse amor identificatório – que aqui examinaremos nos termos do menino com seu pai – teria efeitos catastróficos. Poderia ser causada pelo medo do pai de seus próprios sentimentos pelo filho, ou pela inveja em relação às gratificações que ele obtém da mãe (Benjamin, 2015).

Para além do dano, já citado, que isso causa em termos da desvalorização da mulher e do feminino, essa relação também é fonte dos intensos sentimentos de competitividade entre o pai e o menino e, posteriormente, do menino em relação ao mundo, especificamente com outros homens. Como reação inconsciente, a mente masculina é vulnerável a se tornar excepcionalmente sensível às questões de tamanho, poder, performance. Person (Brady, 2006) nota que “talvez a característica mais impressionante do senso de inadequação masculina é sua crença de que outros homens verdadeiramente possuem a sexualidade ‘macho’ à qual ele aspira, fazendo que seus dotes e habilidades parecerem ainda mais empobrecidos” (p. 1204).

Isso me fez lembrar do conceito de pênis narcisista, trazido por André Green (1988). Segundo o autor, dentro do processo do desenvolvimento libidinal que perpassa o narcisismo, também a sexualidade pode ser vista como posta em concorrência com os impulsos narcisistas. Nesse sentido, seria plenamente possível que uma pessoa tivesse um grande número de relações sexuais, porém estas fossem quase completamente à revelia do outro, servindo apenas para a gratificação narcísica. Escreve:

“Gozar torna-se a prova de uma integridade narcisista preservada. Neste sentido, paralelamente à culpa que nunca está ausente, mas tem menores consequências, é a vergonha de não gozar que suplanta a angústia de ação. Da mesma forma, o fracasso sexual faz correr o risco de abandono ou de rejeição pelo objeto. Isto marca menos a perda de amor do que a perda de valor e a falência da necessidade de reconhecimento pelo outro. Pior ainda, os sofrimentos narcisistas aumentam para além do fracasso pela insatisfação do desejo à medida que esta marca a dependência do sujeito ao objeto para satisfazer as pulsões – mais precisamente, para obter o silêncio dos desejos que somente o objeto pode satisfazer. A inveja do objeto alcança seu ápice quando se supõe que este goza sem conflito. O pênis narcisista projetado (não importa de qual sexo) é aquele que pode gozar sem inibição, sem culpa e sem vergonha. Seu valor não se deve à sua capacidade de gozo, mas à sua aptidão para anular suas tensões satisfazendo suas pulsões, todo prazer convertendo-se em investimento narcisista do Eu.” (pp. 44-45).

Ora, aqui conseguimos vislumbrar uma explicação muito efetiva para esses intensos sentimentos de diminuição, por um lado, e inveja, pelo outro. Poderíamos entender uma grande parte de uma certa “performance” ou encenação da masculinidade como tentativas progressivamente mais intensas de alcançar esse ideal fálico narcísico. Podemos enumerar aqui vários aspectos disso: o fetiche pelo dinheiro, pelos carros, e, mais atualmente, pelas armas, o status de “pegador”, dentre vários outros.

À título de conclusão, para podermos passar à discussão do tema, espero ter dado indícios de que a masculinidade tóxica pode ser atribuída em grande parte à complicações e dificuldades que começam na relação inicial com a mãe, mas talvez principalmente com o pai. Tais questões afetam de forma decisiva aspectos mentais profundos do menino. A resolução do Édipo e a consequente instalação do superego e do ideal de Ego se darão sob que signo? O signo machista parece dizer que só se é homem em apagamento a todas as outras formas de subjetividade. Para além disso, o desenvolvimento do menino também será muito influenciado por como tais fantasias são reforçadas ou elaboradas no processo de crescimento, seja dentro da cena familiar, seja também através da cultura.

Para terminar com uma proposição otimista, gostaria de colocar algumas ideias finais. Fogel (Brady, 2016), retorna ao conceito freudiano da bissexualidade interna, e diz que precisamos pensar em princípios femininos e masculinos, ambos contidos em todas as pessoas. “Os homens e a teoria psicanalítica precisam lidar com sua parte feminina perdida”, diz ele, e acrescenta que é preciso encontrar um conceito de homem e de pai que não seja apenas relacionado à oposição com a mulher. Também retorno a Benjamin e ao conceito de amor identificatório. Postula ela que a negação desse amor identificatório homoerótico entre pais e meninos seria a base da criação do medo da passividade e da dependência, projetados para a figura da mãe e da mulher. A conclusão de seu texto me pareceu muito oportuna, e irei citá-la também para terminar minha apresentação:

(Falando sobre uma autora, Jane Gallop) “Propondo que poderia existir um pênis real, que afirmaria, se engajaria, encontraria e gratificaria uma vagina, em oposição a um ideal fálico que estabelece a diferença como a negação do outro sexo, ela concluiu perguntando: ‘E se houvesse um pênis?’ Talvez à luz de nosso entendimento das vulnerabilidades da masculinidade poderíamos perguntar, e se ao invés do patriarcado, da lei do pai, pudesse haver simplesmente um pai? Ou talvez, o amor de um pai?” (p.276).

Referências:

Benjamin, J. (2015). Masculinity, Complex: A Historical Take. Studies in Gender and Sexuality, 16(4), 271-277.

Brady, M. T. (2006). The Riddle of Masculinity. Journal of the American Psychoanalytic Association, 54(4), 1195-1206.

Freud, S. (1910/1996). Um tipo de escolha especial feita pelos homens. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: Edição Standard Brasileira, Vol. IX. Rio de Janeiro: Imago.

Freud, S. (1923/1996). O Ego e o Id. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: Edição Standard Brasileira, Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago.

Green, A. (1988) Narcisismo de vida, narcisismo de morte. São Paulo: Escuta.

Winnicott, D.W. (1957/2005). A contribuição da mãe para a sociedade. In: Tudo Começa em Casa. São Paulo: Martins Fontes

A Mulher no Século XXI

Eliane de Andrade
Psicanalista. Membro Efetivo, Didata e Docente da SPRJ. Membro da Trieb Mineira.

 

Quando me convidaram para falar nessa Mesa e me pediram um título, suei frio! Como posso falar das mulheres? Como poderia representar e ter ciência do que vivem/sofrem todas as mulheres? 

Informei à minha interlocutora que eu poderia falar de algumas mulheres: a mulher que vejo todos os dias no espelho; as que escuto no divã; aquelas com as quais trabalho; para as quais dou aulas ou discuto em grupos de estudo sobre a situação das mulheres no mundo hoje. Mas isto fala “da mulher”? Claro que não. Por menos que eu queira, minha mensagem se insere numa visão ocidental e patriarcal-cristã. As mulheres negras, quilombolas, indígenas, LGBTQIA+, imigrantes, refugiadas, de outras cultuas podem não se sentir aqui representadas. Então é um texto que parte de um horizonte reduzido, no qual me situo, com todas as limitações que nossa própria inclusão traz a qualquer pesquisador/a ou cientista. 

Assim, vou registrar um pouco do que sinto e ouço, sem pretender representar esta categoria ampla chamada Mulher.

Segundo a pesquisadora e doutora Marlise Matos (1; 2), professora do Departamento de Ciências Políticas da UFMG, a luta das mulheres por condições de igualdade e reconhecimento é um processo político e histórico. Para ela, o Feminismo encontra-se, atualmente, na sua quarta onda. De acordo com a pesquisadora, a opressão às mulheres continua gerando a luta, pois obtivemos avanços, mas ainda bastante insuficientes. 

Sigo conclamando a “musa feminista” Simone de Beauvoir (que, segundo a professora Marlise, representa a segunda onda do Feminismo) em seu sempre eterno e atual O Segundo Sexo afirma, categoricamente que “…o mundo sempre pertenceu aos machos” (3).

Historicamente, é fácil provar tal afirmação: desde o sumiço da Deusa e a criação do mundo feito à imagem e semelhança de um Deus homem, Eva, em detrimento de Lilith, surgida da costela de Adão, passamos pela Idade Média, com sua fogueiras para queimar mulheres brilhantes, também conhecidas como Bruxas, chegando ao trabalho doméstico escravizante e alienador, as operárias têxteis queimadas por pedirem redução de horas trabalhadas e equiparação salarial em NY, também nos EUA a queima dos sutiãs em protesto aos concursos de Misses, assassinatos de líderes e representantes femininas como Margarida Silva, Marielle, e tantas outras, segue a luta cotidiana das mulheres por uma vida com dignidade, reconhecimento e respeito. O corpo feminino, seu lugar sempre difuso para os homens, feito de objeto sexual, continua sendo aniquilado/escravizado por trabalhos exaustivos ou vigiados/cerceados por uma moral duvidosa. 

Em 1977, quando publicado no Brasil, o livro Vigiar e Punir (4), de Michel Foucault, trazia o proto pós-modernismo (5) do estudo das consequências controladoras e alienantes da vigilância corporal. Corpo e discurso são o centro do seu trabalho, revelando a institucionalização dos saberes e sua subserviência à microfísica do poder. Propõe o “corpo político”, ou seja, “…conjunto dos elementos materiais e das técnicas que servem de armas, de reforço, de vias de comunicação e de pontos de apoio para as relações de poder e de saber que investem os corpos humanos e os submetem…” (4, p. 31).

Mas enquanto alguns poderosos, reis, ganham uma alma à medida que se afastam de seus corpos, outros – frágeis, presidiários – são reduzidos a nada! As tecnologias de poder sobre o corpo operam desumanizando os não poderosos.

O corpo da mulher continua sendo algo que, para a maioria da população masculina, parece ser despossuído de alma: temos um dos maiores índices de feminicídio no Brasil.

No Monitor da Violência do G1(mídia convencional, portanto, o dado é assustador), de 08/03/2023, lemos que, em 2022, 1.410 mulheres foram assassinadas no Brasil, apenas por serem mulheres, o que representa uma mulher morta a cada 6 horas (6).

Já o Jornal Estado de Minas publica em 20/07/2023 que Minas é o terceiro Estado em número de ligações para o 190 pedindo socorro em 2022, o que equivale a mais de 31 mil ligações no ano! (7)

O Jornal Brasil de Fato, em sua edição de 24/08/2023, informa que, no primeiro semestre de 2023, no Rio de Janeiro, foram registrados 16 mil casos de violência doméstica contra mulheres (8). Os atendimentos a mulheres nestas condições parecem ter crescido em todo o país, sendo expressiva a busca de medidas protetivas da Lei Maria da Penha.

Diante desta pequena consulta em sites de notícias (poderíamos estendê-la enormemente nas mídias convencionais e/ou alternativas!), pasmos que ficamos, somos obrigados a rever todas as grandes conquistas que as mulheres fizeram ao longo dos séculos: parece que continuamos a ser as bruxas que podem ser queimadas na fogueira!

Se a cada minuto, 35 mulheres são, de alguma maneira, agredidas no Brasil, estamos diante de uma infestação machista-misógina que não se cura. 

Voltando à Edição do Jornal Estado de Minas (7):

Para a professora do Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG) e pesquisadora do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (CRISP) da UFMG, Luana Hordones, o aumento da violência doméstica contra as mulheres pode estar ligado à expansão do discurso de ódio direcionado às diversas minorias, principalmente, no último ano.  A professora Luana afirma que:

As mulheres são muito vulneráveis a esse discurso de ódio violento que teve uma expansão nos últimos anos no Brasil, especialmente no ano passado, por causa das eleições. Um ano eleitoral que teve esse discurso como instrumento político. A expansão desse discurso afetou tanto essas mulheres como outras minorias. Além da misoginia, que já é um traço da nossa cultura, os números refletem este discurso como instrumento político-social no Brasil.

Já estávamos vivendo a perda do constrangimento com relação a ataques a mulheres. O ex-titular máximo da República, antes e depois de eleito (2019-2022), não se avexava em nos atacar, diminuir e humilhar. Segundo Judith Butler (9), “a injúria linguística parece resultar não apenas das palavras utilizadas para se dirigir a alguém, mas também do próprio modo de endereçamento, um modo – uma disposição ou um posicionamento convencional – que interpela e constitui o sujeito” (p. 12-13).

Ora, a excepcionalidade do que o Brasil viveu em termos de ordem, convívio, gerência, crescimento, etc., entre 2016 e 2022, apenas mostrou, com todas as matizes e espectros possíveis, que no coração de grande parte da população a palavra (e a pessoa) “mulher” pode ser suprimida ou adjetivada negativamente sem o menor escrúpulo. Não é à toa que uma primeira-dama pode ser convidada a ser referida como “bela, recatada e do lar”, voltando a uma coisificação medieval. A porteira do retrocesso foi aberta não só na retirada de uma mulher da Presidência da República, mas na apresentação injuriante e reducionista do sexo feminino.

Ainda seguindo Butler, pensamos que a linguagem nos precede e nos guia. A maneira como somos nomeados tem papel importante nas nossas formações de autoimagem e constituem nossa identidade. Da linguagem não verbal dos pais que esperam a chegada do bebê, ao balbucio maternal ao recém-nascido, a palavra, mesmo que não dita, se inscreve em nossa mente e nos apresenta o desejo dos pais. A injúria, ou o preconceito, funcionarão como marca a ser cumprida (ou não) na vida da mulher.

Freud (1912-2013), em Psicologia do Amor II (10), nos conta sobre os perigos que se sofre, desde a infância até a vida adulta, no sentido de poder amar e desejar o mesmo objeto. Informa, logo no início do texto, que o que mais leva as pessoas a procurarem auxílio (possivelmente do psicanalista…) é a impotência psíquica. Nesta afecção, o desejo sexual não encontra resposta no funcionamento dos órgãos sexuais.

Cita, ainda, uma possível fixação incestuosa na mãe ou na irmã (claro, ele falava apenas do homem), impressões penosas acidentais relacionadas à atividade sexual infantil, “…e também aqueles fatores que, de maneira geral, reduzem a libido que se deve dirigir ao objeto sexual feminino.” Ele nos informa que, como toda neurose, a origem é determinada por uma inibição na história do desenvolvimento da libido, impedindo que a corrente afetiva e a sensual se combinem. As frustrações da realidade e a atração aos objetos da infância podem se combinar para fixar a libido. Porém, a proibição do incesto se impondo, esta fixação permanece no inconsciente, gerando insistente lembranças. Ora, todas as defesas contra as fantasias de consumação do mais proibido dos coitos tendem ao fracasso, gerando sintomas, sendo o mais importante para o nosso estudo a depreciação do objeto sexual. Quer dizer, tanto faz que seja vivida na impossibilidade concreta do encontro sexual, pelo fato de o objeto não ter valor, quanto só poder realizar o objeto sexual com um objeto considerado sem valor (pelo homem). 

Se pensamos a patologia da desfusão cognitiva das correntes sensual e afetiva, como apresentada por Freud, talvez não lêssemos as nuances que ela implica: há graus desta desvalorização do objeto. Do ato sexual, que é imediatamente abandonado como “sujo”, ao feminicídio, há toda uma gama de relações em que seu aparecimento se mescla. Neste espectro, encontramos o que Foucault chamaria de “tecnologia de poder sobre o corpo”, quando a mulher é que terá seu corpo vigiado, punido, treinado, corrigido. E, ainda assim, quando as fixações infantis e sádicas do homem não conseguem ser elaboradas, é o corpo da mulher que paga, nas violências domésticas (e outras) e nos feminicídios. A tentativa machista é a de querer colocar a mulher num limiar de controle absoluto, tanto no corpo quanto no lugar social, de forma a protegê-lo de suas próprias fantasias infantis. Coação, vigilância, castigo, punição são tratados como “amor”, “cuidado”, “perdi a cabeça”, “ela sabe porque apanha”, “fiquei com ciúmes”, “não aceito o fim da relação” (estas duas últimas, as mais frequentes “justificativas” para a grande parte dos feminicídios).

Uma certa “cultura”, aparelho ideológico, por meio de suas produções musicais, televisivas, etc., revela que a mulher é quem se submete a ser um objeto sexual desejadíssimo, a que tem de ouvir os soluços de um macho “arrependido”. Também é ela quem normatiza e iguala os corpos, pois consegue fazer crer que transmite o que é ser mulher (uma boa biblioteca resolveria esse caso, mas o hábito da leitura foi substituído pela ansiosa “checagem” do celular).

Freud, continuando, afirma que a impotência psíquica não se restringe ao coito não-realizado, mas a uma situação muito mais comum do que se imagina, que é a não obtenção de prazer pelo homem no ato sexual: “…homens que nunca falham no ato, mas que o realizam sem dele derivar qualquer prazer especial…” (10, p. 168) – nestes momentos eu quase absolvo o machismo de Freud! Continua ele: 

Se… voltarmos nossa atenção, não para a extensão do conceito de impotência psíquica, mas para as gradações em sua sintomatologia, não poderemos fugir à conclusão de que o comportamento amoroso dos homens, no mundo civilizado de hoje, de modo geral, traz o selo da impotência psíquica. Existe apenas um pequeno número de pessoas educadas nas quais as duas correntes, de afeição e de sensualidade, se fundiram adequadamente; o homem quase sempre sente respeito pela mulher, que atua como restrição à sua atividade sexual, e só desenvolve potência completa quando se acha com um objeto sexual depreciado; e isto, por sua vez, é causado, em parte, pela entrada de componentes perversos em seus objetivos sexuais, os quais não ousa satisfazer com a mulher que ele respeita… Assegura-se de prazer sexual completo apenas quando se pode dedicar, sem reservas, a obter satisfação, o que, com sua mulher bem-educada, por exemplo, não se atreve a realizar. É esta a origem de sua necessidade de um objeto sexual depreciado, de uma mulher eticamente inferior, a quem não precise atribuir escrúpulos estéticos, que não o conheça em seu outro círculo de relações sociais e que ali não o possa julgar.”

A seguir, Freud afirma que sobrepujar os ideais de mãe virgem e assexuada são a receita para a felicidade sexual dos homens. O artigo se alonga, mas não é nosso objetivo aqui nos deter nas demais considerações do texto.

E a mulher no século XXI, mudou algo?

Parece que, do ponto de vista histórico, as conquistas são inegáveis. As mulheres estão em toda parte, mas sempre tendo de lutar.  Como exemplo, temos que o governo atual (do presidente Lula) implementou a política de igualdade de salários para o mesmo cargo, entre homens e mulheres. 

O homem, apenas enquanto ser do sexo masculino, não tem que lutar todos os dias para se fazer respeitar. 

Mesmo estando em todos os lugares, a mulher continua tendo de se impor, pois ao mais leve descuido, é novamente colocada em uma posição inferior. 

Diante do que foi exposto aqui, tendo o tempo se aproximado do fim, gostaria de deixar para posterior reflexão: Por que o machismo ainda não foi incluído em uma categoria psicopatológica?

Obrigada.

Belo Horizonte, setembro de 2023.

Referências

1 – Matos, M. (2019). A violência política sexista no Brasil: o caso da Presidenta Dilma Rousseff. In: Rosa, R., Safar, G.; Theodoro, L.C., Oliveira, R. & Narciso, R. (Org.). Observando as desigualdades de gênero e raça nas dinâmicas sociais em Minas Gerais. Belo Horizonte/MG: Instituto Cultural Boa Esperança, 1, 180-231.

2 – Matos, M. (2021). A violência política sexista, racista e interseccional: mapeando conceitos da violência política contra as mulheres. In: D’Ávila, M. (Org.). Sempre Foi sobre Nós: Relatos sobre a Violência Política de Gênero no Brasil. Porto Alegre/RS: Instituto E Se Fosse Você, 1, 210-227.

3 – Beauvoir, S. (1949-1980). O Segundo Sexo.  4a. ed. Milliet Sérgio (trad.). Rio de Janeiro/RJ: Nova Fronteira.

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5 – Rodrigues, M. (2006). Michel Foucault sem espelhos: um pensador proto pós-moderno. (Tese de doutorado). Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

6 – G1/Globo (2023, março). Monitor da Violência. Recuperado de https://g1. globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2023/03/08/brasil-bate–recorde-de-feminicidios-em-2022-com-uma-mulher-morta-a-cada-6-horas.ghtml

7 – Jornal Estado de Minas.(2023, julho). Pedidos de Socorro. Violência doméstica: MG é o 3° estado com mais ligações pedindo socorro.Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Recuperado de https://www.em.com.br/ app/noticia/ gerais/ 2023/07/20/internagerais,1523002/violência domestica-mg-e-o-3-estado-com-mais-ligacoes-pedindo-socorro.shtml

8 – Jornal Brasil de Fato. (2023, agosto). [Título] Recuperado de https://www. brasildefato.com.br/

9 – Butler, J. (2021). Discurso de ódio, uma política do performativo. São Paulo/SP:  UNESP.

10 – Freud, S. (1912-2013). Psicologia do Amor II. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, XI, Rio de Janeiro/RJ: Imago.